Quatro Luas

o outro lado do espelho da música da Europa. Domingos :22h-24h com repetição as quartas : 21h-23h, na AVEIRO FM 96.5

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Local: Aveiro, Portugal

sexta-feira, outubro 05, 2007



D. Galás – “Les Litanies de Satan” – (Nova Iorque, 1982, Y Records; Londres, 1988, Mute Records)


Idealizem a voz a quem pertencem todos os mais reveladores pesadelos do vosso último quarto de século...
...com uma extensão de 4 oitavas, capaz de guinchos arrepiantes de animal em matadouro, ou de uma melancolia dominical de fim de tarde como só Billie Holiday poderia conseguir, ... agora personifiquem essa voz no corpo de uma mulher-anjo-demónio que consegue ver para além da hipocrisia e da injustiça e recusa ficar calada; cuja coragem vai ao ponto de denunciar as conspirações bio-geo-económicas que condicionam a pouca vontade de encontrar uma cura para a peste dos séculos XX e XXI, e culmina no acto de assumir ter contraído uma outra doença infecto-contagiosa, eventualmente mortal, numa sociedade avassalada pela preconceito mascarado de solidariedade corporativa e (pseudo) politicamente correcta...
...deverão já ter chegado ao nome da greco-americana Diamanda Galás, cujo disco de estreia, a peça conjunta “Women with steak Knives/ Les Litanies de Satan”, foi lançado há 25 anos, quando os anos 80 mostravam a sua melhor face, em que uma relativa inocência pessimista aliada ao espírito da música popular jovem de então, não permitia vislumbrar ainda os tons negros e apocalípticos da realidade que condicionariam futuramente o ocidente. No entanto, ao pegar em Charles Baudelaire e no seu poema imortal “Les Litanies de Satan”, Diamanda era pioneira duma estética dúplice de alerta e de lamento.
No anos 70, enquanto liderava uma trupe de travestis, que realizavam performances teatrais de vanguarda em palcos obscuros, de San Diego a San Francisco, Miss Zina, como era então conhecida, terá aliado à sua formação clássica de “upper-middle class girl”, uma vertente de aprendizagem que dificilmente seria entendida pelo comum dos mortais; esse lado trágico da sua vida terá encontrado mais profundo impacto quando o seu irmão, o escritor Philip-Dimitri morreu vítima de SIDA em 86. Repescando “Les Litanies de Satan”, Diamanda não é o anjo negro da música ambiental de vanguarda; encarna a prece do sujeito poético da genial composição do poeta das “Flores do mal”, transfigurado em samaritana justiceira. A cantora costuma justificar a sua devoção a Baudelaire pelo facto de reconhecer nos seus escritos qualidades verdadeiramente litúrgicas – a diferença entre meramente desejar falar e a necessidade urgente de falar, de tirar um fardo da alma.
Originalmente gravado no Outono de 81, mas guardado até ao final do ano seguinte, editado na nova-iorquina Y records, reeditado em 88 pela londrina Mute Records, “Les Litanies de Satan” é como que o reencontro com um pesadelo educativo, uma experiência iniciática de tonalidades “doom” que servirá de esclarecimento às novas gerações de ouvintes, para uma sempre melhor e mais completa compreensão da arte sónica/dramática contemporânea – isto, para além de ser uma motivação inesquecível, indelével, para a leitura e estudo do celestial poeta. Como dizia Barry Adamson (ex-Magazine, ex-Bad Seeds e amigo pessoal de Diamanda), imaginar e conhecer os abismos, desde que lá não se caia, é sempre um exercício profilático, que permite lá voltar sem perigo sempre que se queira.
Para nós, simples mortais ávidos de sensações fortes, tomamos nota e sublinhamos...
“O Satan prends pitié de ma longue misère...”